sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Artigo de Frei Betto

Valores na economia pós-crise

A crise financeira desencadeada a partir de setembro de 2008 exige, de todos, profunda reflexão e mudança de atitudes. Ela encerra uma crise mais profunda: a do modelo civilizatório. O que se quer: um mundo de consumistas ou um mundo de cidadãos?
Frente às oscilações do mercado agiram os governos. A mão invisível foi amputada pelos fatos. A destrambelhada desregulamentação da economia requereu a ação regulamentadora dos governos. O mercado, entregue a si mesmo, entrou em parafuso e perdeu de vista os valores éticos para se fixar apenas nos valores monetários. Foi vítima de sua própria ambição desmedida.
A crise nos impõe, hoje, mudanças de paradigmas. O que significa a robustez dos bancos diante da figura esquálida de 1 bilhão de famintos crônicos? Por que, nos primeiros meses, os governos do G8 destinaram cerca de US$ 1,5 trilhão (até hoje, já são US$ 18 trilhões) para evitar o colapso do sistema financeiro capitalista e apenas (prometeram em L’Aquila, ainda não cumpriram) US$ 20 bilhões para amenizar a fome no mundo?
O que se quer salvar: o sistema financeiro ou a humanidade? Uma economia centrada em valores éticos tem por objetivo, em primeiro lugar, a redução das desigualdades sociais e o bem-estar de todas as pessoas. Sabemos que, hoje, mais de 3 bilhões — quase metade da humanidade — vivem abaixo da linha da pobreza. E 1,3 bilhão ,abaixo da linha da miséria. A falta de alimentação suficiente ceifa, por dia, a vida de 23 mil pessoas. E 80% da riqueza mundial encontram-se concentrados em mãos de apenas 20% da população do planeta.
Sem alterar esse panorama, a humanidade caminhará para a barbárie. Os governos deveriam estar mais preocupados com o crescimento do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do que com o aumento do PIB (Produto Interno Bruto). O que importa, hoje, é a FIB (Felicidade Interna Bruta). As pessoas, em sua maioria, não querem ser ricas, querem ser felizes.
A crise nos faz perguntar: que projeto de sociedade legaremos às futuras gerações? Para que servem tantos avanços científicos e tecnológicos se a população não conta com serviços de saúde acessíveis e eficazes; educação gratuita e de qualidade; transporte público ágil; saneamento básico; moradia decente; direito ao lazer?
Não é ético e, portanto, humano, um sistema que privilegia o lucro privado acima dos direitos comunitários; a especulação à frente da produção; o acesso ao crédito sem o respaldo da poupança. Não é ético um sistema que cria ilhas de opulência cercadas de miséria por todos os lados.
Uma ética para o mundo pós-crise tem como fundamento o bem comum acima das ambições individuais; o direito de o Estado regular a economia e assegurar a toda a população os serviços básicos; o cultivo dos bens infinitos, espirituais, mais importante que o consumo de bens finitos, materiais.
A ética de um novo projeto civilizatório incorpora a preservação ambiental ao conceito de desenvolvimento sustentável; valoriza as redes de economia solidária e de comércio justo; fortalece a sociedade civil organizada como normatizadora da ação do poder público.
O velho Aristóteles já ensinava que o bem maior que todos buscamos — até ao praticar o mal — não se encontra à venda no mercado: a própria felicidade. Ora, o mercado, não tendo como transformar esse bem num produto comercializável, procura nos incutir a convicção de que a felicidade resulta da soma dos prazeres. Ilusão que provoca frustração e dilata o contingente de fracassados espirituais reféns de medicamentos antidepressivos e drogas oferecidas pelo narcotráfico.
O pior de uma crise é nada aprender com ela. E, no esforço de amenizar seus efeitos, não se preocupar em suprimir suas causas. Talvez as religiões não tenham respostas que nos ajudem a encontrar novos valores para o mundo pós-crise. Mas com certeza a tradição espiritual da humanidade tem muito a dizer, pois é na espiritualidade que a pessoa se enxerga e se mede. Ou, na falta dela, se cega e se atola. O ser humano tem sede do Absoluto.
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Faço apenas um passeio socrático”. Diante de olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: “Apenas observo quanta coisa existe que não preciso para ser feliz”.

Frei Betto
Correio Braziliense, 26/02/2010

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